Por Tássia Corina
Luis Buñuel aos quarto ventos declarava: “Sou ateu, graças a Deus”. A contradição é latente no filme Nazarin, em que o cineasta, ao mesmo tempo em que faz uma crítica à filosofia cristã, de que é preciso fazer sempre o bem, servir ao próximo, usando o princípio da não violência, mostra que o caminho do servir pode ser muito mais espinhoso do que se pensa. A casualidade dos acontecimentos, característica comum das obras surrealistas, faz com que o público perceba que, por mais que o personagem Nazarin tente ser bom, isso não transforma automaticamente o seu ambiente num lugar melhor. Assim como Cristo, sua bondade muitas vezes gera incompreensão e revolta. O próprio nome do protagonista faz analogia ao conhecido termo “Nazareno”, referente a Jesus de Nazaré. Dessa forma, Buñuel tenta provocar no espectador a pergunta: Vale a pena ter fé?
O filme é baseado no romance de Benito Perez Galdós. Nazarin é um padre passando por uma crise de fé, que procura seguir à risca os preceitos de Cristo. Ele serve aos pobres, cuida de uma prostituta ferida em uma briga, salva uma mulher suicida e não demonstrar se apegar a bens materiais. Vive da caridade de outros fiéis, que lhe dão comida. Seguindo os preceitos da religião, ele é um homem que reza, que oferece a outra face e que sempre diz a verdade, mesmo quando acusado ou sob risco. Andara, a prostituta, pede asilo ao padre, porque está ferida e precisa se esconder da polícia, por ter assassinado outra mulher. O padre a acolhe e isso lhe traz problemas, sendo obrigado a deixar a batina e fugir da cidade. Ele então passa a viver a vida de missionário, fazendo voto de pobreza e ajudando pessoas em seu caminho, com a companhia de Andara e Beatriz, a moça abandonada pelo amante que tenta suicídio. Muitas provações passam em seu caminho e Nazarin acaba sendo preso e agredido por marginais. Ele é defendido por outro ladrão que impede que ele seja surrado e desabafa para Nazarin: ”você está no lado do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”, evidenciando mais uma vez, o questionamento do cineasta a respeito das vantagens em ser um cristão.
"Nazarín é motivado por suas crenças, sua ideologia. O que me move é o que acontece quando sua ideologia falha, porque sempre que Nazarin se envolve em algo, mesmo no melhor de sua fé, ele somente traz conflitos e desastres”, diz Buñuel.
O traço surrealista, ainda que não tão evidente, se mostra na obra por meio dos detalhes. Uma das imagens marcantes passa-se no apartamento de Nazarin. Andara, a prostituta, acaba de chegar, convalescendo-se de seu ferimento, tendo febres e alucinações. Ela olha para a imagem na parede retratando o rosto de Cristo com a coroa de espinhos. No meio de seus delírios, ela vê o rosto sorrindo, dando gargalhadas. Irreverente, supõe-se que Buñuel queria mostrar contradições no próprio Cristo, que ama e que julga. Mas pode-se interpretar também como a imaginação da própria Andara, a prostituta, que descrente até então, não se sente merecedora de ter os cuidados de um homem de fé. Além dessa cena, outros traços surreais: o anão que se apaixona por Andara e a chama de feia, os surtos inexplicáveis de Beatriz, o momento de oração de cura da menina, entre outros.
O filme oferece duas interpretações: de que o filme faz alusão à Biblia e é genuinamente religioso, e outra, de que tudo não passa de uma crítica à ilusão da fé e a descoberta da realidade frágil do homem. Buñuel não assume nenhuma das duas. Em entrevista, o cineasta afirma: "Já não creio no progresso social. Só posso acreditar em alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé, ainda que fracassem, como Nazarin".
Na cena final, Nazarin é conduzido à sua sentença, e no caminho, o policial para em uma ambulante, que vende frutas. Ela, sensibilizada, pede ao guarda para dar ao protagonista, uma fruta. Simbolicamente, Nazarin ganha um abacaxi com uma exuberante coroa de espinhos, dando sentido à peregrinação do padre até então, e de certo modo, confirmando a sua ideologia de fé. A impressão que fica é a de um padre retratado sem clichês, como uma pessoa comum, que escolheu um caminho de fé e que vai até as últimas consequências por conta dessa escolha.