“Cultura é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Edward B. Taylor

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Testemunhando a fé ou a falta dela? - As contradições surreais de Buñuel

 

Por Tássia Corina

Luis Buñuel aos quarto ventos declarava: “Sou ateu, graças a Deus”. A contradição é latente no filme Nazarin, em que o cineasta, ao mesmo tempo em que faz uma crítica à filosofia cristã, de que é preciso fazer sempre o bem, servir ao próximo, usando o princípio da não violência, mostra que o caminho do servir pode ser muito mais espinhoso do que se pensa. A casualidade dos acontecimentos, característica comum das obras surrealistas, faz com que o público perceba que, por mais que o personagem Nazarin tente ser bom, isso não transforma automaticamente o seu ambiente num lugar melhor. Assim como Cristo, sua bondade muitas vezes gera incompreensão e revolta. O próprio nome do protagonista faz analogia ao conhecido termo “Nazareno”, referente a Jesus de Nazaré. Dessa forma, Buñuel tenta provocar no espectador a pergunta: Vale a pena ter fé?

O filme é baseado no romance de Benito Perez Galdós. Nazarin é um padre passando por uma crise de fé, que procura seguir à risca os preceitos de Cristo. Ele serve aos pobres, cuida de uma prostituta ferida em uma briga, salva uma mulher suicida e não demonstrar se apegar a bens materiais. Vive da caridade de outros fiéis, que lhe dão comida. Seguindo os preceitos da religião, ele é um homem que reza, que oferece a outra face e que sempre diz a verdade, mesmo quando acusado ou sob risco. Andara, a prostituta, pede asilo ao padre, porque está ferida e precisa se esconder da polícia, por ter assassinado outra mulher. O padre a acolhe e isso lhe traz problemas, sendo obrigado a deixar a batina e fugir da cidade. Ele então passa a viver a vida de missionário, fazendo voto de pobreza e ajudando pessoas em seu caminho, com a companhia de Andara e Beatriz, a moça abandonada pelo amante que tenta suicídio. Muitas provações passam em seu caminho e Nazarin acaba sendo preso e agredido por marginais. Ele é defendido por outro ladrão que impede que ele seja surrado e desabafa para Nazarin: ”você está no lado do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”, evidenciando mais uma vez, o questionamento do cineasta a respeito das vantagens em ser um cristão.

"Nazarín é motivado por suas crenças, sua ideologia. O que me move é o que acontece quando sua ideologia falha, porque sempre que Nazarin se envolve em algo, mesmo no melhor de sua fé, ele somente traz conflitos e desastres”, diz Buñuel.

Nazarin, Luis Buñuel 1958–México

O traço surrealista, ainda que não tão evidente, se mostra na obra por meio dos detalhes. Uma das imagens marcantes passa-se no apartamento de Nazarin. Andara, a prostituta, acaba de chegar, convalescendo-se de seu ferimento, tendo febres e alucinações. Ela olha para a imagem na parede retratando o rosto de Cristo com a coroa de espinhos. No meio de seus delírios, ela vê o rosto sorrindo, dando gargalhadas. Irreverente, supõe-se que Buñuel queria mostrar contradições no próprio Cristo, que ama e que julga. Mas pode-se interpretar também como a imaginação da própria Andara, a prostituta, que descrente até então, não se sente merecedora de ter os cuidados de um homem de fé. Além dessa cena, outros traços surreais: o anão que se apaixona por Andara e a chama de feia, os surtos inexplicáveis de Beatriz, o momento de oração de cura da menina, entre outros.

O filme oferece duas interpretações: de que o filme faz alusão à Biblia e é genuinamente religioso, e outra, de que tudo não passa de uma crítica à ilusão da fé e a descoberta da realidade frágil do homem. Buñuel não assume nenhuma das duas. Em entrevista, o cineasta afirma: "Já não creio no progresso social. Só posso acreditar em alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé, ainda que fracassem, como Nazarin".

Na cena final, Nazarin é conduzido à sua sentença, e no caminho, o policial para em uma ambulante, que vende frutas. Ela, sensibilizada, pede ao guarda para dar ao protagonista, uma fruta. Simbolicamente, Nazarin ganha um abacaxi com uma exuberante coroa de espinhos, dando sentido à peregrinação do padre até então, e de certo modo, confirmando a sua ideologia de fé. A impressão que fica é a de um padre retratado sem clichês, como uma pessoa comum, que escolheu um caminho de fé e que vai até as últimas consequências por conta dessa escolha.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Os Esquecidos, Luis Buñuel

 

Eles também foram esquecidos

Por Tássia Corina

Há cerca de sessenta anos atrás, Buñuel já se incomodava com uma situação que continua atual. A perda da infância e da inocência nos subúrbios de grandes cidades e o aumento da delinquência por meio desses jovens. O filme Os Esquecidos (Los olvidados, 1950) conta a história de Pedro (Alfonso Mejía), uma criança, nascida de um estupro, que carente de carinho familiar, principalmente da mãe, que passa seus dias na rua, na companhia de outros jovens solitários e arruaceiros. Jaibo (Roberto Cobo), órfão de pai e mãe, faz parte desse grupo e passa a ser o líder naturalmente, conseguindo tudo o que quer por meios ilícitos. Fugido do reformatório, Jaibo deseja se vingar de Julian (Javier Amézcua) por ter sido denunciado por ele e acaba o matando, na companhia de Pedro. O crime então passa a dominar a vida dos dois, que vivem morrendo de medo de serem pegos. Tentando mudar de vida e conseguir o tão sonhado carinho da mãe (Estela Inda), Pedro decide arrumar um emprego, mas por causa de Jaibo, é acusado de roubo e mandado para um reformatório. Mesmo dentro da Escola Agrícola, Jaibo consegue atrapalhar os planos de Pedro, fazendo com que o confronto entre os dois seja algo inevitável. Pedro percebe o quão negativa é essa amizade e denuncia Jaibo pelo assassinato de Julian. A partir daí, Jaibo só pensa em vingança e Buñuel não evita o final trágico.

O cineasta foi muito corajoso ao escolher retratar a realidade mexicana ao invés de sua beleza, o que causou muita polêmica na época da estréia. Os personagens Pedro, El Jaibo, Ojitos, Metche e o restante do grupo que vivem pelos subúrbios da Cidade do México ilustram os jovens abandonados por uma sociedade que, ocupada demais com seus afazeres ou preocupada demais com suas situações econômicas, além de quererem impor a lei e a disciplina à força, negam-lhes afeto e compaixão. No filme, a família é representada com membros ausentes, insensíveis, frios. Como a mãe de Pedro, que o ignora e não faz questão do filho em casa; o pai de Ojitos, que o abandona no centro da cidade; os pais que Jaibo nunca conheceu (ele descreve o rosto da mulher que imagina ser sua mãe); o irmão mais velho de Metche, que vendo Jaibo molestando-a, finge que nada está acontecendo.

Na tela, fica estampado o retrato do abandono familiar, da falta de políticas públicas, o descaso governamental, da miséria. O personagem diretor do reformatório afirma em seu discurso que gostaria de matar a miséria, para que elas não matem suas crianças. O que vemos hoje no Brasil, na América Latina em geral, no México, Nova York, não é muito diferente. A juventude miserável está nas ruas, aprendendo a ser os bandidos de amanhã, o que deixa latente uma ação urgente e necessária: investir na infância, na educação, em perspectivas de uma vida melhor para os jovens. Buñuel nessa obra, nada tem de surreal. Mal sabia ele que seu filme seria ainda tão alarmante, mesmo 62 anos depois.